sexta-feira, 4 de novembro de 2011

"Ama nemes harcot megharcoltam, futásomat elvégeztem, a hitet megtartottam" (2 Tim 4, 7).

Combati o bom combate, terminei a minha corrida, guardei a fé. Este trecho da bíblia, do 2º livro de Timóteo, esteve por muitas décadas no jazigo do lado húngaro da família. Por algum motivo, retiraram a citação em húngaro e isso, a meu ver, foi uma perda da história da família, mas quem sou eu né? Nem religioso eu sou...

Enfim, uma coisa que sempre digo é que minha família só se reúne em funerais. Nem casamentos, nem batizados, nem aniversários de primeiro ano, nem nada, só em funerais mesmo. E é justo nesses momentos que o lado mais obscuro do ser humano se revela; as intrigas e suspeitas, as teorias da conspiração e, claro, altíssimas doses de culpa e remorso.

Algo relativamente comum nessas situações é a conhecida frase: "mas quem cuidava do fulano não devia ter feito assim, vai saber se ele não tinha mais uns anos de vida". E sabe, refletindo sobre o conteúdo implícito dessa frase, fico realmente confuso com os limites da fé. E sobre os limites da maldade também.

Ora, quem tem fé não diz que é somente deus quem tem o poder de retirar a vida de alguém? E que somente ele sabe a hora de cada um? Respondam-me então: se quem decide tudo no final é deus, como assim "o vô morreu porque deixaram ele numa clínica em vez de cuidar em casa"? Foi uma falha humana ou foi a hora certa, já escrita antes do nascimento, de deixar a vida?

Ok, eu entendo que na hora do sofrimento, talvez como mecanismo para aliviar a dor de perder uma pessoa amada, todo mundo só quer achar um culpado. E já que, devido à natureza infalível do conceito de deus, não dá para culpá-lo, as pessoas acham-se no direito de culpar justamente a pessoa que mais teve amor para com o finado e assumiu os cuidados nos últimos tempos de vida dele.

Mas mesmo um mecanismo anti-sofrimento deve ter um limite. Não dá para sair, cruelmente, julgando como própria ou imprópria a forma como o defunto foi cuidado pelo familiar que se encarregou disso. Assumam suas dores, se acreditam em deus, aceitem que não foi obra humana a morte daquele parente amado. Se quiserem culpar outro ser humano pela morte, aí fica feio acreditar em um deus sábio que não tira ninguém da vida antes da hora certa. As duas ideias simplesmente não casam.

É muito fácil julgar os cuidados com um moribundo como sendo inadequados, quero ver se os críticos de plantão teriam o mesmo peito de assumir essa responsabilidade, árdua e dolorosa, de cuidar para que o restante de vida do familiar seja digno e de qualidade.

Dizer que seres humanos são contraditórios não é novidade. Mas a crueldade tem que ter um limite. Quem morreu, já se foi mesmo, já combateu seu bom combate, terminou sua corrida. Quem fica, sofre, todos sofrem. Não é justo imputar mais sofrimento a alguém simplesmente por não aceitar uma perda.

4 comentários:

  1. A contradição, embora evidente pra alguns, inexiste para a maioria. Talvez porque, na hora da dor, ao distribuir culpas, sobra até pra Deus, que levou alguém antes da hora ou algo que o valha. Você está certo, deveria haver um limite pra esse tipo de maldade. Na verdade, ele existe, mas não se expressa em quantidade de impropérios, mas no tempo que os segue. Infelizmente, depois disso, as coisas seguem como no ditado popular: quem fala (bate) esquece, quem escuta (apanha), não.

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  2. (Ah, e a citação inicial realmente é muito boa - uma pena que tenha sido retirada do jazigo da sua família)

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  3. Quando minha avó morreu, não lembro ou não soube de alguém que tenha falado que minha mãe errou nos cuidados com ela. Bem, teve meu tio que tem um ~probleminha~ na cabeça, risos. Mas fora isso, não sei de mais nenhum tipo de comentário maldoso. Mas MESMO ASSIM, minha mãe ficou se borrando de medo de falarem algo, ela mesma se culpou imensamente e tal. Perder a mãe já não é suficientemente doloroso, pra que sofrer com mais a culpa ainda? Sei que quando morre alguém, é meio que uma diversão familiar: a quem nós vamos culpar agora?

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  4. Parabéns pelo seu post!
    Você está corretíssimo, meu irmão!
    De fato não há porque culpar alguém.
    Mas acredito que este efeito se dá pela generalização (usando de rotulação e classificação). É fácil para quem tem alguma fé dizer que ateus, ateístas, deístas são todos iguais (e não são). E assim também "vace-virso": pessoas tem fé e acreditam em Deus em uma infinidade de "graus" diferentes, com mais ou menos fervor, entendimento, consciência, maturidade, inteligência, sabedoria e etc. A generalização (acho que) é sempre imprópria em todos os casos.
    Pessoas com alguma, digamos, "maturidade na fé", podem crer que Deus usa, tantos os bons, quantos os maus, para cumprir seus desígnios; e desta forma (maktub) tudo já estava escrito.
    Talvez com um pouco mais (ou menos, não sei) de maturidade, poder-se-ia dizer que nada está e escrito, mas que os que colaboram para o reino de Deus vêem maravilhas, enquanto outros sofrem (ainda mais) por se afastar de Deus cometendo erros brutais (e/ou sendo vítimas dos erros dos outros).
    É verdade que para quem perde, entender que, por exemplo, um(a) irmã(o) "matou" (ou "deixou morrer") sua mãe, requer uma maturidade tal que passa também pelo perdão, que deve ser maior que a insanidade do assassino (ou "descuidado"). E a maior parte das pessoas não tem maturidade na fé para tanto.
    De qualquer forma, uma tentação sempre é o julgamento. O instinto de julgar o erro do outro é um obstáculo enorme para o perdão, da onde nasce ódio, rancor, vingança e outras mazelas.
    Por fim tudo se resume em cuidar dos que ficaram (seja quem for) e não em julgá-los, o que, acredito, cabe somente a Deus.
    Cadê o botão "Curtir" do seu blog?
    Abraço!

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