Desculpe-me, mas hoje precisei pensar em você. Há muitos meses já me habituei a trancafiá-lo numa caixa e escondê-la na memória. Mas fique tranquilo, a caixa é bem bonita, de madeira, com suas iniciais marchetadas na tampa, bem encerada para brilhar mesmo no recôndito mais escuro.
Abri a caixa e deixei-o ressurgir no melhor inteiro que, hoje, você pode ser meu. Seu sorriso apertado veio de imediato diante dos meus olhos, seguido pela sua voz macia, um veludo sonoro que, mesmo quando está apenas falando, sempre me deu calma. Uma paz que, atual e infelizmente, só pode existir no meu imaginário. Mesmo que hoje sejam apenas memórias, fico muito contente com a certeza de que, pela eternidade de algumas semanas, esse sorriso e essa voz estiveram comigo, fazendo-me leve, aliviando o sofrimento daqueles dias nublados em pleno julho, o mês em que as nuvens de verdade somem da cidade.
E hoje precisei abrir a caixa encerada. Queria mesmo era o seu abraço, firme, silencioso e macio. Mas na falta da realidade, serve-me apenas lembrar de tudo que conversamos. Não dos papos sérios, queria mesmo era conversar descontraidamente sobre o quanto é tedioso lavar talheres, sobre a pintura do seu quarto, que só ficou concluída pouco tempo antes de você se mudar, sobre o tamanho exagerado das taças de vinho naquela adega elegante em que fomos.
Você foi absolutamente competente em trazer luz e calor a um coração gélido e ressequido. Foi na esperança de, outra vez, ter luz por esses dias novamente difíceis que eu retirei a caixa encerada do cantinho em que ela fica e a destranquei. Embebi-me nas suas lembranças ao som daquela música da Maria Bethânia que conheci contigo, abri um vinho e senti a luz atravessando a lente na frente dos meus olhos. Acabou Bethânia, fechei a caixa e a recoloquei no canto escuro da minha memória. Não quero gastar toda a doçura que guardo atrás da marchetaria. Posso precisar de novo.